A recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que condenou a Netflix ao pagamento retroativo de uma CIDE de US$ 619 milhões, ecoou como um, mas não pelas razões que a maioria imagina. À primeira vista, parece ser mais um capítulo da conturbada relação entre fisco e grandes corporações. Uma análise mais cuidadosa, porém, revela que a suposta “Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico” imposta à gigante do streaming é, na verdade, um imposto sobre movimentação financeira disfarçado, parcial e, ousamos dizer, fraudulento. Este episódio é um sintoma alarmante da patologia que aflige o sistema fiscal brasileiro, onde a busca desesperada por arrecadação se sobrepõe à lógica econômica, à previsibilidade jurídica e à própria Constituição.
A CIDE, em sua concepção original, é instrumento de política econômica com objetivos regulatórios, não arrecadatórios. No caso da Netflix, contudo, vê-se uma metamorfose em um imposto sobre o faturamento, um turnover tax puro e simples. A base de cálculo é o valor bruto da operação, independentemente do lucro ou da viabilidade econômica da empresa. Nada errado que assim seja se um imposto como esse existisse legalmente, o que não acontece nesse caso.
Essa característica econômica não é acidental; é a marca registrada de outros impostos: Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF) e Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). A distinção econômica entre a CIDE-Netflix e IPMF/CPMF reside no seu escopo. Enquanto IPMF e CPMF eram tributos de abrangência universal, e por isso com baixíssimas alíquotas, a CIDE aplicada à Netflix é seletiva, um raio que atinge uma única empresa e com uma grande mordida ou pedágio no turnover. É como se, em vez de taxar todas as transações bancárias do país, o governo decidisse aplicar a CPMF apenas sobre as transações de uma agência bancária específica ou de um tipo particular de conta. Economicamente, o mecanismo de extração de valor é o mesmo, a essência do ônus tributário permanece inalterada; o que muda é a amplitude da rede.
É aqui que a fraude jurídica se torna gritante. Rotular um imposto sobre faturamento como “CIDE” não é mera questão de terminologia, mas uma manobra para contornar princípios basilares do direito tributário e da Constituição. A criação de um imposto exige rito legislativo robusto, aprovação do Congresso e respeito à anterioridade e à legalidade estrita. Ao camuflá-lo como“ contribuição”, o governo se se outorga uma prerrogativa quase imperial, incompatível com um Estado de Direito. Isso permite que o governo crie um imposto sobre faturamento para um setor específico sem discussão, transparência e salvaguardas.
O caso da Netflix é emblemático dessa arbitrariedade. Empresas precisam de previsibilidade para investir, planejar e operar. Ser surpreendido por uma dívida tributária multimilionária, baseada em interpretação que subverte a natu-reza do tributo, é um fator de desestabilização que afasta a confiança. Hoje é a Netflix; amanhã pode ser qualquer outra empresa ou setor.
Por que o governo aceita o risco de afugentar investimentos? A resposta é simples: arrecadação. Em um país com máquina pública voraz e necessidades de caixa crônicas, a busca por receita suplanta equidade, eficiência e legalidade. Se o objetivo é arrecadar sobre faturamento, que se crie um imposto claro, universal, debatido publicamente e respeitador dos ritos constitucionais. Seria mais honesto e mais seguro para a economia.
A CIDE imposta à Netflix é mais do que uma cobrança fiscal: é o espelho de uma mentalidade arrecadatória que desvaloriza a integridade jurídica e a previsibilidade econômica. Enquanto isso persistir, o Brasil permanecerá um país onde investir é um jogo de alto risco e onde a previsibilidade é uma miragem.














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