“Espelho cego” é o título de um poema de Cecilia Meireles. Ela se questiona sobre o que aconteceu com seu semblante. Mas também o que teria ocorrido com sua alma. Começa com “Onde, a face de prata e cristal puro, e aquela deslumbrante exatidão que revela o mais breve aceno obscuro”.
Assim acontece com a gente. O início da existência nos reserva uma face de prata e cristal puro. Também é o tempo dos sonhos e do entusiasmo onipotente. Há sofrimento, é óbvio, mas ele não é permanente, tanto que a superação de limites é uma certeza para a juventude: “e o compasso das lágrimas, e a seta que de repente galga os céus do olhar e com margens sobre-humanas se projeta?”
Mas a vida continua. A maturidade traz mais incertezas do que inabaláveis convicções. Sombras, desafios e ameaças tornam plúmbeas as perspectivas. E a poeta indaga: “Onde, as auroras? Onde, os labirintos, e o frêmito que rasga o peso ao mar, e as grutas, de áureos lustres e aéreos plintos?”. Plinto é um verbete pouco utilizado. Significa peanha, um suporte fixo a uma superfície, mas também pode representar um ataque, um soco.
A imagem simbólica serve para mostrar que as auroras se foram. É hora do poente, do lusco-fusco, antes da completa escuridão. Teria o espelho condições de enxergar, na face que reflete, aquilo que o ser humano que a ostenta já sofreu? Ficam no rosto, indeléveis como cicatrizes, os sinais das lutas, das decepções, das ingratidões, dos ressentimentos?
Em que se transformou aquele semblante juvenil e pretensiosamente convencido de que era, de verdade, “o dono do mundo”?
Diante desse cotejo entre o que foi sonho e o que é realidade, a poeta questiona: “Ah! – que fazes do rosto que te entrego?”. O que é que o espelho consegue fazer com essa feição maltratada? Ela enxerga nele “musgos imóveis sobre a sua luz… Limos, líquens… Opaco espelho cego!”
O espelho teria conseguido detectar os estigmas que alguém vai colecionando, após uma existência plena de vicissitudes, como são aquelas de qualquer ser humano? Não é por acaso que se chama a existência terrena de “peregrinação” por um “vale de lágrimas”.
Um espelho cego, que pouco ou nada reflita, parece preferível àquele que mostrasse na face reproduzida, toda a sua coleção de desenganos.