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O furto das melancias

21/04/2012

Na cidade de Palmas, capital do Estado de Tocantins, dois infelizes cidadãos furtaram duas melancias. Presos em flagrante,  e em face de um pedido de habeas corpus em seu favor, o Promotor de Justiça insistiu na manutenção dos indiciados na prisão. O juiz da 3ª Vara Criminal da Comarca, Rafael Gonçalves de Paula (convém gravar com reverências esse nome) mandou soltá-los de imediato por meio de decisão pela qual passa a merecer o maior respeito das pessoas sensatas, solidárias, de elevado espírito cristão, e sobretudo despidas desse farisaísmo legalista muito comum em certos membros do Ministério Público. Aliás, posições assim extremadas têm sido quase sempre validadas por juízes despreparados e carentes de um mínimo de sensibilidade, virtude escassa em varios escalões da magistratura brasileira, em todas as instâncias.
Mas, vamos à sentença, verdadeira lição de vida, que merece figurar como aula de bom senso, alegria para advogados e operadores do direito.
“Trata-se de auto de prisão em flagrante de Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha, que foram detidos em virtude de suposto furto de duas (2) melancias. Instado a se manifestar o Sr. Promotor de Justiça opinou pela manutenção dos indiciados na prisão. Para conceder a liberdade a eles eu poderia invocar inúmeros fundamentos: os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda ou Ghandi, o Direito Natural, o principio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do chamado Direito alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados e dos políticos do mensalão deste governo, que sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de se colocar os indiciados na Universidade do Crime (o sistema penitenciário nacional) … Poderia sustentar que duas melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém. Poderia aproveitar para fazer um discurso contra a situação econômica brasileira que mantém 95% da população sobrevivendo  com o mínimo necessário apesar da promessa desta presidente que muito fala, nada sabe e pouco faz. Poderia brandir minha ira contra os neo-liberais, o consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do socialismo, a colonização européia … Poderia dizer que George Bush joga bilhões de dólares em bombas na cabeça dos iraquianos, enquanto bilhões de seres humanos passam fome pela Terra e aí cadê a Justiça nesse mundo ? Poderia mesmo admitir minha mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha obviedade. Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir. Simplesmente, mandarei soltar os indiciados. Quem quiser que escolha o motivo. Expeçam-se os alvarás. Intimem-se. Rafael Gonçalves de Paula. Juiz de Direito.”
Extraído dos autos do processo nº 124/03 da 3ª Vara Criminal da  Comarca de  Palmas (TO). A decisão é de 2003, mas seu conteúdo explicita valores morais permanentes que justificam sua divulgação sempre, a qualquer tempo.

Tito Costa é advogado, ex-prefeito de São Bernardo do Campo e ex- deputado federal constituinte de 1988. E-mail: antoniotitocosta@uol.com.br