Gaudêncio Torquato Opinião

O prato cheio da corrupção

   O Brasil continua sendo um país corrupto. O que todos sabem. A novidade é que acaba de ganhar o registro de pior desempenho no ranking sobre a corrupção, em 2024. A escalação é feita no Índice de Percepção da Corrupção da Transparência Internacional, de acordo com relatório divulgado esta semana. Atingiu a menor nota (34 pontos de 100) e uma péssima colocação (107ª posição entre 180 países) na série do levantamento iniciada em 2012.

   Uma vergonha para os Poderes Constitucionais, eis que os escândalos da hora envolvem o Executivo (“toma lá, dá cá”; favorecimentos a entidades e parlamentares amigos), o Legislativo (distribuição de recursos sem transparência feitos por emendas) e o Judiciário (vendas de sentença em Estados). Quanto mais se fala de controles rígidos, e o TCU até pode comprovar, maior a corrupção. E por que isso ocorre? 

   Explico. No centro dos lamaçais que são desvendados, remanesce uma questão central, já aflorada por Norberto Bobbio, no seu clássico “O Futuro da Democracia”: o poder invisível, cuja eliminação constitui uma das promessas não cumpridas pela democracia.

   O poder invisível consiste nas ações incontroláveis de grupos que agem nas entranhas da administração pública, dando formato a um duplo sistema de poder, chegando, em certos momentos, a “peitar” a estrutura formal de mando. Exemplo radical desse fenômeno ocorre quando uma facção criminosa chega ter um orçamento de muitos bilhões de reais, com o comércio de drogas, vendas de armas, agindo nas malhas intestinas do Estado, subornando autoridades e estruturas burocráticas.

   Há uma máfia que age nas sombras da administração, difícil de ser completamente mapeada. Sua origem se localiza nos antigos Estados absolutos, quando as decisões eram tomadas pelos arcana imperii, autoridades ocultas que se amparavam no direito de avocar as grandes decisões políticas, evitando a transparência do poder.

   Um dos princípios basilares da democracia é o jogo aberto das ideias, o debate, a publicização dos atos governamentais, como forma de controle dos limites do poder estatuído. No absolutismo, o princípio consistia na tese de que é lícito ao Estado o que não é lícito aos cidadãos. As democracias modernas, ditas representativas, conservam algumas mazelas do autoritarismo, entre as quais a capacidade de confundir o interesse geral com o interesse individual ou de grupos, a preservação de oligarquias e a consequente extensão de redes invisíveis de poder.

   Os malefícios gerados pelas distorções da democracia se assemelham ao efeito-espuma. Os fenômenos se expandem, criando tipos de ilegalidade, desenhando uma aética nas relações políticas, fomentando o clientelismo, o voto fisiológico e a apatia das massas.

   As taxas de credibilidade na política e nos governantes decrescem, os valores éticos se estiolam, os fundamentos morais da sociedade se abalam e o resultado de tudo isso é o atraso no processo de modernização política e social. As reformas, proclamadas e declamadas em todos os ciclos políticos, abrangem aquelas voltadas para os sistemas judiciário, tributário e político – e, até essa última, que tramita no Congresso, sobre a mudança do regime (implantação do semipresidencialismo). Ora, elas não eliminariam as deformações sofridas pela democracia. Seriam um passo ainda curto no caminho do aperfeiçoamento.

   Portanto, iremos conviver, por muito tempo ainda, com o poder invisível e suas nefastas consequências.

   É oportuno anotar: falta vontade política para eliminar os cancros que se formam nas entranhas do Estado; falta coragem para listar juízes e magistrados corruptos, punindo-se severamente; falta um Congresso disposto a abrir as comportas da política e implantar os pilares da transparência.

   Como é possível usar cárceres de segurança máxima como escritórios da ilegalidade? E por que a corrupção parece ter aumentado nos últimos tempos? Alguns dizem que a doença da corrupção tem se espraiado porque os controles são mais rígidos e, assim, os casos chegam à opinião pública em maior volume. O TCU tem ganhado grande destaque com seus olhos de “big-brother”. Será que outros órgãos correm nessa mesma trilha, a AGU (Advocacia Geral da União), o MP (Ministério Público), a PGU (Procuradoria Geral da União), a CVM (Comissão de Valores Mobiliários), entre as muitas siglas que povoam a seara institucional?

   O fato é que o estágio civilizatório de um povo é fator determinante para aferir o estágio de desenvolvimento de um país. Povos dóceis, indiferentes, ignorantes, passivos parecem ser os da preferência dos governantes, mas a democracia tem necessitado cada vez mais de cidadãos ativos, conscientes, participativos. A cidadania ativa, tão bem-conceituada por John Stuart Mill, em suas Considerações sobre o Governo Representativo, pode ser conseguida por meio da educação.

   Não adianta fazer reforma política – mudar sistema de voto, de representação, exigir fidelidade partidária, conferir aos partidos densidade doutrinária – se os súditos, na simbologia de Bobbio, se assemelham a um bando de ovelhas pastando capim. A promessa da democracia – de educar os cidadãos – é, por isso mesmo, o compromisso prioritário para que o Brasil possa sair do estágio pré-civilizatório em matéria de cidadania política.

   Enquanto os brasileiros estiverem comendo no velho prato cultural e educacional, usufruindo programas assistencialistas de cunho populista, como bolsas famílias, pés de meia, minha casa minha vida, as nossas doenças permanecerão.  

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