Padre Nicanor, vigário da paróquia de Torrinha por algumas décadas, um espanhol rabugento, malcriado, ameaçava-nos no Carnaval: o demônio fica escondido nos salões de baile e nos cordões para levar todos ao pecado. E muitos acreditavam !
Felizmente já não há mais quaresmas como antigamente. Nos meus idos de menino, e já adolescente, a quaresma era tempo de recolhimento e de respeito. Agora, não é tanto. São os quarenta dias que antecedem e preparam a Festa da Páscoa, como o Pessah dos judeus, na mesma época. Naqueles quarenta dias não havia bailes, nem casamentos, nem festas da igreja. Tudo por conta de um tempo de grandes restrições, que já passou e a própria igreja católica, como se sabe, tem sido mais ajustada aos tempos de agora quanto a exigências no comportamento de seus fieis nesses quarenta dias que seriam somente de recolhimento, oração e jejum, às sextas feiras. Ainda assim, continua sendo um período em que a liturgia quaresmal se volta para a prática da penitência, na preparação para a grande festa da Ressurreição, o ápice das festas pascais. Nessa liturgia se inclui a Quarta-feira de Cinzas dia seguinte ao tríduo da folia. Os fieis costumam ir à igreja para receber as cinzas que o padre lhes impõe fazendo-lhes uma cruz na testa com as palavras: “Lembra-te homem que és pó e ao pó tornarás (reverterás)”. Tudo muito lúgubre. Hoje só os mais idosos, especialmente mulheres, cuidam dessa prática.
Os mais novos, a moçada, os foliões ainda estarão chegando, alta madrugada, das folias que atravessaram a noite de terça para quarta. No mundo de hoje, da informática, dos celulares, do facebook, das descrenças em rituais considerados ultrapassados, vai faltando espaço para o recolhimento, a meditação, a oração. Os deuses do mundo de agora são outros, ou serão os mesmos de sempre? As aberturas do Papa Francisco dirigem-se a este mundo que ele bem conhece e quer conquistar para a sua Igreja. Não que ele esteja insinuando leituras mais abertas de toda essa longa tradição, mas o certo é que há um despertar diferente quanto a costumes morais e religiosos nos dias atuais. Para não se falar do desinteresse generalizado quanto a assuntos de religião e sua prática.
Enfim, a quaresma dos meus tempos de menino era outra, lúgubre, ameaçadora, perversa. A gente era considerado culpado por fatos e comportamentos de que sequer suspeitávamos. Até o sofrimento de Cristo e sua morte eram debitados ao nosso pecado. Que pecado seria esse com tamanha força para o mal ?