26 Apr 2024


Odette Bellinghausen, a senhora do piano

Publicado em DIVANIR BELLINGHAUSEN
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18/02/2012

Meu filho Renato descobriu esta crônica sobre minha mãe Odette de autoria do professor Renato Ladeia. Vai principalmente para meus amigos que um dia conviveram com ela... e também para amigos que convivem diariamente comigo.
Aquela senhora tinha um piano, mas para que serve um piano? Diz um poema do Alberto Caieiro, heterônimo de Fernando Pessoa. Para mim que ao passar pela Rua João Pessoa e ouvia em meio ao barulho do trânsito o suave som de um piano, servia e muito para abrandar a aridez da cidade. Quem era a senhora do piano vim sabê-lo algum tempo depois. Era Odete Tavares Belling-hausen, a primeira professora de piano da cidade e em cujas mãos muitas crianças passaram para aprender as primeiras notas musicais.
A cidade foi crescendo e a casa dela, que em tempos passados desfrutava um ar ainda bucólico, transformou-se em passagem obrigatória de carros e pedestres. O comércio foi se ampliando e com ele mais movimento. Mas dona Odete, continuou o seu cotidiano entre o grande jardim com seus caramanchões e o piano. Um dia atiraram uma pedra na sua janela, que quebrou a vidraça e caiu bem em cima do piano, um velho alemão de meia cauda. Uma ato de absurda agressão, sinal de tempos difíceis. Aquilo poderia ser um aviso para que tomasse cuidado, pois morava sozinha naquele casarão da década de cinqüenta. Mas ela era corajosa e não se intimidou, apesar de andar com dificuldade e com os sinais da idade alterando a sua percepção das coisas e do mundo. Estava presente em todos os eventos culturais da cidade. Lembro-me de uma homenagem que recebeu das escolas de música da cidade e como o mestre de cerimônia faltou, tive a honra de ler a sua biografia no teatro.
Numa outa vez a encontramos numa despedida de uma amiga comum, Marlita Brandner Valilatti , também professora de piano, que estava de mudança para a Áustria. Como estava só, oferecemos uma carona e ela insistiu que entrássemos em sua casa para um café ou coisa assim. Concordamos, apesar do adiantado da hora. Ela queria um pouco de companhia e não tivemos coragem de negá-la. Apressou-se em mostrar suas coisas, os quadros que ela pintou sobre a antiga paisagem da cidade, suas composições, como a Japonesinha Alegre da qual ganhamos uma cópia da partitura. Ela tocou com alguma dificuldade, pois as suas mãos já não obedeciam mais a sua mente ainda inquieta.
Resolveu oferecer-nos uma bebida, um licorzinho caseiro, que também aceitamos. Mas ela trouxe três doses, inclusive para minha filha Mariane, com apenas dez anos. Desculpou-se, mas como o licor era bom, tomei as duas. Terminamos a visita com a sensação de que ela ainda queria conversar mais, contar causos, suas lembranças, suas memórias de uma mulher idosa que conheceu muita gente, que viveu fatos já apagados da história da cidade. Pensamos em voltar qualquer dia para fazer algum registro de suas memórias que em pouco tempo se apagaria para sempre, mas não cumprimos a promessa.
Hoje a casa de esquina em que havia uma senhora que tinha um piano, é apenas um estacionamento, preservando apenas um muro original com seus balaustres de época. O som do piano ainda ressoa nas tardes frias de inverno, mas ninguém ouve. O aroma das camélias do seu jardim e ainda o doce sabor do licor de jabuticabas ainda estão presentes em minhas lembranças. O som dos mortos é inaudível e somente para aqueles iniciados na arte de lembrar sem ver e sem ouvir é possível dentro das impossibilidades.
Abraço, Didi

Divanir Bellinghausen Coppini (Didi) é escritora e voluntária em São Bernardo - e-mail: O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

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