15 May 2024


Mário Assumpção: “Não olhamos apenas para quem comete a violência doméstica”

Publicado em Política
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  São Bernardo ganhou, há um mês, a primeira Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. O magistrado Mário Rubens Assumpção Filho, que assumiu a titularidade da Vara, em entrevista exclusiva, revela que o ciclo da violência doméstica é uma situação “aflitiva de Saúde” e ainda que muitas pessoas não “se percebem enquanto autores de violência e nem como vítimas da violência”. O juiz revela que, atualmente, em São Bernardo são aplicadas de quatro a oito medidas protetivas por dia e que o número de casos de violência doméstica chega a 200 por mês. Confira os principais trechos.

Folha do ABC - Como o Judiciário pode auxiliar na implementação de políticas públicas e articular com os demais atores da rede de atendimento à mulher e, assim contribuir para que os índices de violência doméstica sejam reduzidos?

 Mário Rubens Assumpção Filho - Políticas públicas são muito importantes porque na questão da violência doméstica temos a necessidade de mudar a mentalidade das pessoas e isso só conseguimos com a educação. Não é apenas uma questão do Judiciário ou uma questão de condenações, que vamos conseguir mudar isso.

   Quando falamos em políticas públicas, falamos em multidisciplinaridade. São várias disciplinas atuando em conjunto. Não adianta ter apenas o Poder Judiciário fazendo a sua parte. Precisamos de psicólogos, assistentes sociais, precisamos da polícia e de todos os órgãos a eles relacionados. Temos duas frentes muito importantes. Uma rede de atendimento e uma rede de enfrentamento. A rede de enfrentamento da violência doméstica são os órgãos responsáveis pelo processo, pela sanção penal em cima disso: a Polícia, o Ministério Público, a Defensoria Pública, a OAB e o Poder Judiciário. Quando falamos em rede de atendimento, todos esses órgãos da rede de enfrentamento, mais os órgãos de Educação e Saúde Pública, porque a violência doméstica não é apenas uma questão de Segurança Pública. Ela é também uma questão de Educação e de Saúde Pública.

   Por exemplo: fala-se que a mulher acaba dando chance para voltar com aquela pessoa que a agrediu, mas ela não se percebe enquanto parte deste ciclo da violência doméstica e as pessoas acabam não dando o apoio necessário, exatamente porque acham que ela gosta de apanhar. E isso não é verdade, ninguém gosta de apanhar. O ciclo da violência doméstica é uma situação aflitiva de saúde. As pessoas não se percebem enquanto autores de violência e nem como vítimas da violência. Então, para romper isso é necessário todo um trabalho de Educação, de conscientização e também, nesta situação, às vezes, a sentença penal é importante, para que as pessoas comecem a refletir sobre aquilo que aconteceu.

Uma política pública que acho que é super importante é o trabalho com o agressor. Estamos tentando implementar em São Bernardo, como já foi aplicado em São Paulo, no Taboão. É o projeto ‘Tempo de Despertar’, faço parte do ‘Justiça de Saia’, junto à com a doutora Gabriela Mansur. Já realizamos esse projeto em São Paulo. São projetos que fazem com que o homem acabe refletindo sobre o que ele fez.

Folha - O ciclo da violência doméstica acaba se repetindo. Como evitar que isso aconteça?

Mario - O ciclo da violência doméstica para o homem é diferente. O homem acha que ele nada fez. Quando ele explode a primeira reação é negar. Ele diz que não fez nada. Depois ele vai para a parte da injustiça, ele fala que realmente fez, mas que ela não precisava ir até a Delegacia, pois isso era uma questão interna, da família. Ele se sente injustiçado, depois ele quer se reconciliar, mas acaba não entendendo muito o que deu de errado.

   Então, essa situação é tratada, nestes grupos reflexivos, precisamos desconstruir aquele homem machista. O nosso foco é o machismo, para depois podermos construir algo em troca. Por exemplo, se tirarmos aquela masculinidade tóxica, o que vamos pôr no lugar? O homem tem a sua vontade, os seus desejos, mas a primeira coisa é falar sobre sentimentos e ele nunca foi educado para falar sobre isso. Achamos que o homem é mais simples. Não. Ele fala menos, mas é muito mais complexo, porque ele tem algo interno que não coloca para fora. Nesta sociedade machista que vivemos, a mulher é acostumada e educada a falar sobre os seus sentimentos. Já o homem não. Ele engole tudo e explode de uma forma agressiva. Então, temos que trabalhar neste homem. Essa é uma política pública que dá certo. A reincidência, temos poucos estudos que já foram feitos, mas de 67%, 70% dos casos, chega a 2% daquele que passa por um grupo reflexivo. A chance dele voltar a cometer a agressão com outra companheira ou com a mesma é muito menor. São essas coisas que fazem com que o feminicídio seja atacado.

Folha O sr. afirmou durante a cerimônia de instalação da Vara de Violência Doméstica que é preciso quebrar os paradigmas e os estereótipos machistas no dia a dia. Como isso é possível?

Mário - O machismo da sociedade patriarcal funciona acerca destes estereótipos e a forma de manter o estereótipo do homem, tal como ele existe na sociedade é falar que aquilo é natural. Naturalizar aqueles estereótipos é a forma mais comum e mais antiga de você manter aquilo inalterado. É isso que temos que quebrar. Então, por exemplo, o homem, fisicamente, ele é mais forte. Naturalmente, todo o homem é mais forte que a mulher? Não. Esses estereótipos, acabamos quebrando, dizendo o contrário. E cabe a nós, Judiciário, nas sentenças, que damos e nas nossas decisões de medidas protetivas, expor e falar exatamente isso. Esses estereótipos, só conseguimos quebrá-los, quando desconstruirmos o homem. E não é só o homem, a mulher também, porque é ela que educa o filho homem. Ela está em contato com aquilo e muito do que percebemos é que é uma questão geracional. A violência, às vezes, é geracional. O filho protege a mãe de um comportamento abusivo do pai, só que ele repete no relacionamento dele, anos mais tarde, aquilo que o pai dele fez. Ele achou errado aquilo, mas repete, porque é aquele modelo que ele teve. É um estereótipo. É preciso, então, trabalhar essa situação.

Folha - A violência doméstica é iniciada com agressões verbais, que ridicularizam, humilham ou ameaçam as vítimas. Ainda há poucos avanços em relação ao combate do abuso emocional, que é tão ou mais devastador que violência física. Na sua avaliação, o que poderia ser feito? A lei Nº 14.188 é suficiente?

Mário- A lei é suficiente sim. Temos dois crimes que foram, com leis promulgadas, um é o stalking e o outro é a violência psicológica. Já entendia que a violência, a lesão corporal estava incluso também a questão da violência psicológica. Já condenei gente por violência psicológica, como se fosse uma lesão corporal, porque quando o artigo 129 fala sobre a integridade física e de saúde. E a saúde, na minha visão, e na da Organização Mundial da Saúde (OMS), é um todo. Não só uma questão corporal, mas também psicológica. E quando nós falamos em violência psicológica, não podemos entendê-la como algo abstrato, como algo que fica apenas na cabeça da pessoa. Por exemplo, quando a pessoa fica com trauma psicológico, ela não come, acaba adoecendo fisicamente, fica triste, reclusa e isso tudo é o aspecto concreto de uma violência psicológica. Todo mundo vê. Quando você vê uma pessoa depressiva, está na cara dela, na voz dela. A concretude da violência psicológica é muito importante que se diga, porque é mais fácil você ver uma depressão, notar uma angústia, do que um corte ou uma cicatriz.

   O que entendo é que, muitas vezes, junto com uma violência física, está uma violência psicológica, que é o que chamamos de dor na alma. Isso acompanha você na cicatrização dos machucados, das lesões. Elas não escondem aquilo que fica na alma e que perdura por anos.

Quem já levou um tapa no rosto sabe o quanto isso fica na mente da pessoa. Então, a violência psicológica já tem respaldo legal e já havia para mim, no artigo 129. Mas, além disso, acho que cabe também a nós, juízes, colocarmos nas nossas sentenças, e também fazer uma proteção da vítima, em relação a esse tratamento. Não basta condenarmos o infrator. Também temos que dar suporte para que o poder público faça a sua parte no tratamento da vítima. O problema da violência doméstica é que não olhamos apenas para quem comete. Temos que ver muito de perto a vítima, educá-la, mostrar a questão da invisibilidade, que possui três níveis. O primeiro começa com a vítima, porque ela não se entende enquanto vítima de violência, acha que foi só grito, que só foi um xingamento, que aquilo não é violência. Agora, quando ela vê que foi vítima de violência, se sente constrangida, e daí é o segundo nível de invisibilidade desta violência e o terceiro é quando ela vai a uma Delegacia ou no Fórum e as pessoas não acreditam que ela sofreu uma violência, e aí é uma violência institucional.

Última modificação em Sábado, 08 Janeiro 2022 10:04
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